sexta-feira, 23 de outubro de 2009

E eu o que sou pra ti?


De longe, de onde me olhas, que sou eu pra ti?
Deixei de ser um quem para ser um quê,

mas ainda tenho vontades, moça...

bem aqui dentro de mim, onde não mais toco
tenho vontades.

De onde me vês, moça, nem parece,
mas vivo.
Tenho medos e desejos, muitos,
e vivo.

Um dia te conto, moça, de todos os planos contigo,
de todos, todos...
e de como os joguei fora, um por um.

Se quiseres, moça, te conto deles e te faço chorar.

E agora veja você, daí onde está se, me vendo, sou eu quem era.

Se você é capaz de me reconhecer: duvido.

É uma lonjura que só, entre nós; é um mundo de mãos,
como se fosse uma fila... é,
e pensar, moça, que a maior distância entre nós um dia foi um abraço.

Mas decidi - não:
Não vou mais te fazer chorar. Cansei de brincar.


Agora,
se puder,
vem me ver.

domingo, 5 de julho de 2009

Ser como não se quer ser. Eis a questão.

Todos os dias
antes de dormir
não tenho mais o tempo que passou
mas tenho muito tempo.
Renato Russo.


Todos os dias antes de dormir tenho pensado em como não me tornar isso que sou agora, que sempre detestei e temi. Como se o que penso agora, estivesse pensando no passado e, com o resultado em mãos do meu destino infeliz, pudesse, com a força do pensamento, me desfazer todo e refazer-me depois, com a novidade.

Eu era tão novo, tão mais culto e feliz. Meu coração ardia e eu sentia vontade de falar com desconhecidos. Eu sentia vontade de sair correndo e, não raras vezes, assim o fiz.
Falei muitas besteiras para mulheres comprometidas e passei fome, também. Assisti a tantos filmes, no cinema, sozinho. E me apaixonava pelas damas e qualquer filme europeu de segunda era um novo clássico que eu idolatrava sozinho.

Sabia ter descontrole - isso é uma arte.

Mas agora - na verdade, de tempo atrás - sinto que morri e esqueceram de avisar. Sinto-me velho, com saúde fraca, sem planos e solto num vento que não sei de onde vem e nem para onde vai. Estou em crise profunda comigo mesmo. Uma crise entre várias partes que optam pelo silêncio quando a vontade primeva é gritar. Coitadas, silenciando, afundam nos seus sofás gigantes de salas pouco iluminadas. E fumam. São assim as partes de mim em crise.

Eu aprendi, desde pequeno, que é para ter medo da quietude e da bonança.

sábado, 20 de junho de 2009

Eu pensei que já tinha vivido de tudo.

Já tinha me apaixonado mais de uma vez, loucamente. Dessas vezes em que a gente, no meio de um beijo, tem vontade de chorar. Você já viveu isso? Vontade de chorar. De loucura, de estar apaixonado, de não saber o que se está sentindo. E vieram lágrimas, devagar. E eram daquelas que escolhem exatamente o canto da boca para cair na língua e você saber que o gosto da lágrima apaixonada é melhor do que mel.

Esse amor um dia acabou e eu então fui experimentar o inferno. Diariamente. Tentei morrer uma vez, embora a vontade tenha sido tentar várias, todos os dias. Cheguei a um ponto onde eu queria morrer mesmo, e como não tinha coragem de pôr fim a tudo de uma única vez, sem remorsos, resolvi morrer aos poucos. Fugi de todos e nessa fuga encontrei meus pares. Iguais a mim. Cada um com sua dor e sua fuga. Cada um com seu monstro. Conheci a droga, e era fantástico o prazer do proibido. Ainda mais porque já naquela época eu achava que já tinha vivido de tudo, que já havia vivido muito, aos vinte e poucos. Mas nem a droga me viciou. Eu era um canalha, que traía agora meu sistema nervoso.

Tive outras mulheres, claro. Mas eram outras. Passavam por mim na esperança de ter encontrado alguém ideal. Mas eu mentia. Mentia muito. Principalmente porque eu falava o que elas queriam ouvir. Eu criava a recitava poesias e mais poesias. De olhos fechados, as fazia voar, e nas nuvens eu as deixava me esperando. Já estava em outra.

Mas eu tenho que falar também que houve uma dessas mulheres que foi diferente. O problema é que era muito mais inteligente do que eu, que ainda achava que já tinha visto de tudo e não precisava de mais ninguém. Eu nunca a fiz voar, porque não conseguia, e tudo o que falava, fazia ou mostrava era pouco. Ela ficava no chão, estática, com cara de quem já viu tudo. Como eu. Essa mulher era um desafio, e todo amor é um desafio próprio, primeiro contra a própria vergonha de estar apaixonado, segundo pelo desafio de conquistar alguém sem que ela saiba disso tudo. Essa mulher me marcou. Ocorre que nunca nos vimos. Ocorre que cansei. Ocorre que a vida corre e eu me sentia inútil e tudo o que era gostoso naquele desafio todo, se tornou um quê indecifrável que eu precisava me livrar. Foi então que traí minha vontade pela segunda (ou terceira) vez. E a perdi com outra, que era então um desafio gostoso de curtir a vida presente, quente como o sexo violentamente apaixonante e molhado de suor. Eu, que achava que já tinha visto de tudo na vida.

Definitivamente, o que fiz a vida inteira, até aqui, foi me trair, trair minhas vontades, porque achava que já tinha visto de tudo, e tudo o que tinha visto já era demais cansativo. E eu queria voar, voar, mas já não tinha mais chão. Agora, ainda sem chão, caí em desgraça comigo mesmo. O problema agora, amigo Eu, é que não tenho mais a quem trair porque eu, que já achei um dia que sabia e tinha visto de tudo na vida, não tenho mais o que achar de mim, porque não me reconheço em mais nenhuma palavra.

Reconhecer-se é acreditar no que está fazendo. Acreditar é exibir, é dispor de algo que tem, e eu tenho pra mim que me sobrou, hoje, apenas a sensação de já ter visto de tudo, embora, quando te veja, depois de tanto tempo, ainda me reste um coração acelerado e uma vergonha infantil de aparecer e tudo no meu corpo conspirar contra minha vontade, me entregando que ainda te quero, que nada morreu e que ainda tenho muito a ver nesta vida.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Eu tinha doze anos quando nossa mãe enlouqueceu.

Ela passava as tardes sentada no sofá, mexendo as mãos bem rápido, como se
fizesse tricô. Mas não havia lã, linhas ou agulhas. Ficávamos em volta, eu e meu
irmão.

Não muito perto, por que não podíamos mostrar o que estávamos fazendo ali, o dia
todo: cuidando para que não corresse.

O pai chegava ao fim do dia, perguntando, sempre carinhoso: Como foi seu dia, meu
amor? E ela respondia: Hoje nos divertimos muito, fomos até a loja da esquina e
compramos jornais. Mas voltamos antes do Roberto morrer.

Não existia Roberto, e nunca morria ninguém. Mas todos os dias, alguém, para minha
mãe, naquele pequeno mundo dela, morria dolorosamente.

Nosso pai, já acostumado com o que chamava de 'gatinhos de mamãe', ouvia
atentamente como se dera a morte, como se comportaram os familiares e como ficaram
os filhos. Só depois de ouvir o relato resumido de uma vida que não existiu, ele
levantava, beijava-a e subia para tomar banho. Ela nos olhava como se estivesse
tudo bem e ia dormir.

Raramente víamos mamãe comer. Era de uma palidez deprimente.

O pai saía trabalhar muito cedo, bem antes de acordarmos. Meu pai morreu de uma
forma engraçada, e até o dia de sua morte, eu só lembrava de outro momento
engraçado com ele. Um dia, meu irmão e eu acordamos antes dele e ficamos espiando
seus movimentos pela casa vazia. Ao chegar à cozinha, abriu a porta do congelador,
tirou duas pedras de gêlo e colocou dentro da cueca. Eu lembro dele, revirando os
olhos, e hoje só consigo entender o que ele sentiu, quando faço o mesmo, todas as
manhãs.

Já procurei em todos os livros e até agora não descobri para que serve colocar
gêlos na cueca, ao despertar. Contudo, não observei nenhum efeito colateral na
atividade: continuo colocando gêlos na cueca, religiosamente.

Em todos os dias, antes de meu pai morrer, minha mãe contava-lhe sobre a morte de
alguém. Aos finais de semana, morriam de doze a trezes pessoas. A presença de meu
pai em casa agitava ainda mais nossa mãe. Sempre achamos que a saída para a sua
angústia era matar aqueles pobre coitados que nunca nasceram.

Meu irmão Lucas saiu de casa, uma tarde, para comprar alguma coisa e demorou para voltar. Nosso pai, ao chegar em casa e dar falta dele, perguntou à mamãe onde estava Lucas. Ficou parada, sem responder. Papá me olhou. Fiz que não sabia.