segunda-feira, 22 de novembro de 2010

MESA (Daqui a meia hora, quando eu te beijar)


Daqui a meia hora, quando eu te beijar, vai ser um novo verão antigo. Eu vou viver denovo os finais de tarde quente, de quando eu sentia um vazio ao ver o sol se pôr. E era um verão meu.

Eu queria agora te fazer uma surpresa. Como naqueles verões, lembra? Eu acho que te levaria uma rosa, na hora do almoço. Acho que te levaria um doce, no meio do sono. Te daria um beijo no pescoço, no meio do banho.

Nós ainda poderíamos caminhar no parque, no meio das crianças. Seríamos menos nós e mais verão. Mais de um verão quente. Eu teria, hoje, um ciúme que não tive antes. Um ciuminho, vai.

Então, à mesa, eu queria te olhar no fundo dos olhos, denovo, e calar num amor tão doído que me impedisse de falar, comer ou cantar.

Te esperaria no mundo do verãolhar quente que eu fiz só pra nós, que nunca mais terminaria. E esse verão só vai começar, daqui a meia hora, quando eu te beijar.
 

sábado, 10 de abril de 2010

A vida e a morte da Vida de Morte de Contigo Flores.




Que ele quis dizer a ela, quando a viu caminhando no Parque, entre o Carrossel e o Algodão Doce; quando viu que trazia por sobre a orelha uma rosa branca, dessas que parecem bem-me-quer; e quis dizer a ela algo que não disse, porque não aproximou-se - por estes e outros motivos que deixamos de fazer o que queremos muito.

Que ele quis dizer a ela, quando a viu sair da Igreja no segundo domingo do mês; quando ela passou entre os bancos da praça e comprou um exemplar antigo de um livro qualquer que ele nunca leu - e então ouviu no alto-falante que alguém oferecia uma música, dizendo estar apaixonado - e a música e o locutor diziam por si só o que ele não teve coragem de dizer-lhe.

Que ele sentiu o cheiro de canela vindo dos cabelos cacheados quando ficou atrás dela na fila da comunhão, na missa do terceiro domingo do mês, inspirando o doce e granulado cheiro da divindade e da pureza, da mestiça folia dos desejos carnais e do respeito ao ritual - mas não pôde deixar de imaginar tocar-lhe a nuca e o pescoço, tirar-lhe os brincos com os dentes e beijar-lhe os olhos então fechados, lambuzando-se com o batom leve que usava sob o rosto claro e noviço.

Quando mandou o ramalhete de flores a ser entregue em sua casa às quinze para as três da tarde do quarto sábado do mês, pensou em escrever-lhe as coisas mais belas, inspirado nos mais inspirados poetas que escreveram o amor, a paixão, a indolência, a insuficiência da razão perante a morte, a inocuidade da Providência sobre o instinto, a periculosidade da causa ante o fato e a displicente figura da paciência fronte a paixão - e surgiu em sua mente a frase "amo o que tu achas"; e foi o que ela acabou lendo, enquanto sorria envergonhada para as irmãs e as tias e as amigas. Um cartão anônimo perdido entre corolas e folhas verdes de joio campal, arranjo de cordas indígenas e um leve cheiro adocicado de quando se nos tiram os pés do chão e nos jogam aos ventos da vida romântica.

Quando a viu passar sozinha, vestida de branco naquela manhã de sol de domingo, as nogueiras faziam seu corpo brilhar quando deixavam dançar entre suas folhas então verdes alguns raios de sol forte, próprios do início de vida de um dia todo - quis dizer-lhe das flores, do bilhete, da paixão, da nobreza dos seus sentimentos, da eficiência com que a amaria por toda a vida se permitisse deixar que ele fosse a voz que a conduziria entre as trevas, a figura que a ensinaria o prático, o médico que lhe lambesse as feridas e a mãe que lhe velaria o sono nas noites febris.

Saltou de dentro dos arbustos e abraçou-a pelas costas, cegando-lhe com um laço de seda vermelha, e sussurrou no seu ouvido, antes que gritasse, - Mandei-te as flores que não prometi, como prova de um amor que nascerá quando tu me disseres que o quer; e ela respondeu, dizendo - Tens o bom gosto de um cavalheiro, mas o hábito de um vassalo. E mais nada. Quando sentiu que a mão já não pressionava a fita, desfez o nó, mas não a tempo de ver sequer a cor das botas de Contigo Flores.

Que Suzana Venice sorriu enquanto tirava o lenço por trás do cabelo e voltou para casa aos saltos, como se o coração estivesse agora cheio, não de sangue, mas de pólvora, de lava, de gás, de óxidos, de alguma massa das quais se fazem bombas, das que explodem em cachos de luz no céu das cidades em noite de Ano Novo.

Contigo Flores a esperou novamente entre os arbustos que já se debruçavam sobre a grama, não como forma de gratidão ou subserviência, mas de quem está acostumado com o peso entre as costas, e já estava Contigo Flores ali, preparado para a passagem de Suzana Venice havia uma hora. E foi então que ela passou, apreensiva com uma nova surpresa daquele que havia, até então, lhe mandado mais de oito dúzias de rosas, de arranjos, de cartões e de pensamentos diferentes - tais como "Te encontro quando fecho os olhos. Sinto que estás onde me acho. Moldo na luz do sol o teu rosto. Esfrio a sombra com o vapor do teu cheiro." E Suzana Venice não sabia o que fazer com as mãos, e muito menos com a boca seca, os olhos trêmulos, os pés suados, a coluna rígida, o lábio insistentemente mordido mais pelo nervosismo do que pelos dentes. Olhava astuciosamente cada folhagem, cada arbusto, cada macega ou galho de árvore que se movia com o vento, nos mais baixos tufos de grama ou nas mais altas folhas dos pinheiros, e cegou novamente. Agora sentia um perfume vindo de algo como um lenço branco, embebido em água de colônia, uma fragrância não muito jovial que, posta em excesso pelo sedutor, escorria agora em um pingo pequeno sobre o seu nariz, caindo então entre os lábios, deixando um gosto de alcachofra na língua. Ela disse-lhe - Sonhei com você esta noite. Era um qualquer sem rosto, mas educado. Ele respondeu a ela, enquanto beijava-lhe o pescoço, dizendo - Eu não durmo mais desde o dia em que te vi, e te espero, e te quero. - Beija-me, ela disse, seca. Enquanto ela o esperava, com a boca quente, sumiu.

Quis dizer a ele, na escuridão dos seus olhos vendados, que a deixasse em paz, que não a perseguisse mais, nem mandasse outras flores. Mas a presença súbita, de quem poderia lhe roubar as jóias, tirava-lhe o juízo, a esperteza, a astúcia, e principalmente as forças dos braços e das pernas, que por causa da idade eram tão vigorosas quanto inexperientes. E o via não vendo e calava, deixava-se levar para qualquer lugar, pelas mãos brandas ou pelo ódio, pela vontade ou pela força, agarrada pelos seios ou pelas orelhas. E assim queria, aturdida pela paixão inóspita de um amante apaixonado, incomum e delicioso; tenro, porém amargo.



E acordava no meio da noite sonhando com ele - que a pegava pela cintura e colocava sobre um cavalo muito alto, enquanto dizia - Hoje te levo à minha casa e amanhã tu me levas à tua. Mas ele não tinha rosto, tanto quando a pegava pelas costas, como quando roçava o peito em seus cabelos enquanto domava as rédeas pela estrada aquela que já ficara marcada pelos encontros às cegas. Acordava aos pulos, ainda ouvindo o som dos cascos do animal a galopar sobre a grama. Pensava durante o dia no sonho, e se aquilo de ele não ter rosto era senão a prova de amor irrefutável em que se ama aquém da beleza, da aparência, das feições de gosto e desgosto, do se dizer com os olhos, do se olhar antes do dizer, ou do não dizer e entender, contudo, pelo movimento sistemático das sobrancelhas.

Queria-o assim, sem rosto e com perfume, pela chegada de gatas, abrupta, sorrateira como a paixão, imediata como o acaso, valente como um herói, rápido como o que marca. Que deixa saudades, ela quis dizer, naquele outro domingo, em que cegou agora pela cor de um laço negro, embebido em água e sabão - quis dizer das saudades suas, mas não disse, e apenas o sentia roçar as mãos no pescoço, como quem cultua a criatura, silenciosamente, enquanto pensa no criador. Disse - Beija-me, por favor, então sentiu o nariz dele tocar seu nariz e cheirá-lo profundamente, sentiu os lábios deslizarem no queixo, e que tinha barba, que não se perfumara, que estava nervoso e que trazia algo no bolso. Não a beijou, nem disse nada, mas voltou às suas costas e partiu - enquanto ela coçava os olhos enjoados com o sabão.

Suzana Venice abriu a janela do quarto e se pôs a pensar nele, em seu nome qualquer, no que fazia, no que pensava - e se sorria, fumava, escovava os dentes, se comia maçã ou amora, se engomava a sua roupa. Pensasse ele também nela agora e os seus pensamentos cruzariam um espaço em comum, uma via rápida entre os espaços atemporais do vento, das folhagens, das casas, das esquinas, das praças e dos campos.



Sorriu e fechou a janela. Recebia agora um ramalhete de girassóis num arranjo de samambaias pequenas e secas, envolvidas em uma pasta amarela muito cheirosa que imaginou ser mirra. Dizia o cartão - Reencarnarás sem, no entanto, morrer. No domingo, como na hora combinada, ela veio de branco passar novamente pela estrada cercada de arbustos, aos passos lentos, como se desse a senha para o ataque de Contigo Flores, que agora tinha as palmas das mãos encharcadas de suor, enquanto as costas reclamavam-lhe a dor pela posição incômoda; a bexiga se entupia, causando um desconforto insuportável - entre gotas de suor que beiravam as pestanas a caminho dos olhos. Suzana Venice caminhou, passando por mais da metade da estrada, e pensou "Hoje não vem", apressou o passo, desistindo de querer o ataque, e cegou enquanto encolhia a cabeça entre os ombros. Sentiu que, diferentemente das outras vezes, agora ele tremia - perdera o controle sobre si mesmo - e isso a encorajou a maiores atitudes tais como lhe pegar no braço. Nada ele fez, senão dizer - Abre as pernas. Então ele percorreu suavemente suas coxas, beijando-lhe o pescoço, mais uma vez, e ela levou até a boca o braço dele que tinha entre as mãos, e lambeu-lhe os dedos mordendo a pele com força. Um pano úmido com cheiro forte, algo de amônia, algo de álcool, algo de fresco, tomou-lhe o ar das narinas e desmaiou. Acordara, então, sob um cavalo que andava, calmo, entre um riacho. Tonta, levando as mãos a boca, pensou sonhar; que em pouco tempo acordaria na cama de sua casa, com a mãe e a irmã à porta, o pai por ali, os demais nos seus cantos, e as gentes com suas preocupações matinais, de arrumar uma coisa enquanto desarruma outra. Mas um braço forte a puxou para si, e era Contigo Flores - que tinha então um rosto, um rosto de um qualquer, destes que passam por nós aos milhares, durante anos, todos os dias, que não nos chama a atenção, que não nos marca, que seríamos incapazes de desenhar, de diferenciar; um rosto sem espécie especial, sem marca qualquer, nem resultante de rugas nem de cicatriz, um rosto recheado de pormenores tão simples e mundanos, tão autênticos como comuns - e tão livre como sorridente ele estava. Não dizia nada, porque o sorriso não tem voz, mas ela entendeu que ele estava levando-a ao lugar dos sonhos, comprado com o dinheiro obtido na venda dos anéis de diamante, os colares de ouro, os brincos de pérola, as miçangas de prata e as tiaras de bronze que lhe roubara tão romanticamente em cada um dos inúmeros encontros amorosos que tiveram - em que tão alegremente ela consentiu em ser roubada, em que sorria porque sabia que não estava comprando a felicidade, mas vendendo a alma ao diabo que a seduzia, que a entorpecia e a deixava apaixonada, que a fazia querer viver, enquanto a jóia, por si só, era adereço para os outros, para quem olha, inveja e persegue - e não para quem usa. A cidade que em horas se horrorizaria, se aturdiria, se organizaria, se mobilizaria, se acomodaria para, por fim, esquecer de tudo, recebia agora a poeira levantada pelas patas daquele cavalo que levava agora um casal qualquer, para um lugar qualquer, que levava nos olhos motivos nobremente surrupiados da moral - onde por todos os tempos Contigo Flores lembraria a Suzana Venice a vida e a morte de sua própria Vida antes de conhecer seu amor.

(originalmente postado em quinta-feira, 11 de maio de 2006, no teoriadoconceito.blogger.com.br)