sábado, 19 de maio de 2012

Não seguiam carreira


Era ele menino sentado no chão do quarto quando ouviu o som das patas dos cavalos. Eram eles senhores e vinham de-adiante, de-bem-depois, de umas setenta braças além do milharal. Era verão.
Correu mesmo descalço pelo chão da casa, de um taboão velho e carcomido, engordurado de cera. Serviam as três horas da tarde de um sábado.



A casa urrava. Urrava de tão vazia. Menino debruçou-se tímido na guarda da janela e esperou os senhores chegarem. Senhores que eram, e tinham armas.
Foram diminuindo o passo à medida que chegavam a casa, e foi dali que menino viu, sem dúvida, tratar-se de uns quantos homens - mais do que imaginara de início.
Os quatro primeiros vinham em fila, os de trás não seguiam carreira.



Menino fechou rápido a janela, e se fazendo valer de uma tranca de pau, atravessou cadeado nas toras, passando corrente nas guardas. Suava frio. Voltou ao quarto correndo e, trancando a porta, escondeu-se embaixo da cama. Fervia. Enquanto isso o assoalho trincava e estalava sozinho - essas coisas de madeiras e ventos. Menino, então, esperou darem as horas.


Capitanearam a casa e o cocho. Cercaram árvores e quintal. Banharam-se da sombra madrinha de uma mangueira. Mas dali não se ouviu voz nem assovio. Nem grito e nem canção. A casa ali, como se desse companhia.


Dali, nem à dois metros pra dentro se puseram - era como a proibição velada de uma lei falsa. Não houve quem cogitasse adentrar. Antes de tudo, e ao final de nada, era sinal de respeito. Daquelas coisas, tipo verdades. Verdades que nunca precisaram ser ditas - já se nascia sabendo.


Quietude infante dentro da casa, suava frio e sentia contorcer a barriga. Enrijecia os tornozelos, os punhos e as mãos. No que triscasse, quebravam. Era de um silêncio ivejável.


Menino não nos pôde contar com certeza, anos depois, o que acontecera. Imaginou o que agora lhes conto. Por que a uma se passaram as coisas pelo lado de fora; e, a duas, de tudo o que se passou só lhe chegaram os sons.


Dizem que um dos senhores que vinha pelas frentes, um dos 4 em fila, apagando um cigarro levantou da sombra e foi na direção da casa. Sob o olhar condenante dos demais, tapeou o chapéu pra cima e bateu quatro palmas sem pressa, dizendo em direção à porta um Oh, de casa!


E foi esta mesma boca de um singelo Oh, de casa!, a que sentiu o primeiro tiro rasgar-lhe os bigodes, rachando de cinco a seis dentes, vindo o tiro a sair pela bochecha. Este tiro, o primeiro, correra do milharal, de onde uns quantos em dobro dos demais dali já se levantavam e faziam despejar sobre os cavalarianos uma chuva de tiros. Não houve reação. Do primeiro ao último instante não piscariam mais de cinco vezes.


Então saí debaixo da cama, abri a porta do quarto, corri para a janela e fiquei esperando um sinal. No que mandaram, abri as portas e janelas, escancarei tudo sem medo, sem dó, com pressa. Tinha sede e calor. Olhei ao monte de corpos espalhados no chão, enchi os pulmões de ar e voltei ao quarto ler e explicar as histórias de Macondo aos meus soldadinhos de chumbo.



Nenhum comentário: